Não é fácil descrever uma dor. Por mais detalhista nas palavras, o outro não irá senti-la e, logo, não saberá como é viver o sofrimento. A estudante de veterinária Carolina Arruda, de 27 anos, assumiu o desafio de aproximar o que sente da realidade dos mais de 300 mil seguidores na rede TikTok, sensibilizados sobre a “pior dor do mundo”. Na tentativa de explicar como é viver com choques permanentes, ela recorre a um exemplo. “É a mesma coisa que se você colocasse um ferro quente ligado na tomada no seu rosto e ficasse segurando ele”, disse, em entrevista ao O TEMPO.
O esforço explicativo que a estudante assumiu sobre a própria dor tem um objetivo: ter testemunhas do seu sofrimento e arrecadar recursos para dar fim à ele. Carolina viralizou na última semana ao abrir uma vaquinha de R$ 150 mil para fazer eutanásia na Suíça. O projeto “Por Uma Despedida Digna” (veja aqui) já atingiu 86% da meta – R$ 130 mil. A mineira de Bambuí, no Centro-Oeste do Estado, foi diagnosticada com neuralgia do trigêmeo (NT) nos dois lados da face há 11 anos. A doença é rara, e o que ela sente ocorre com no máximo 27 pessoas a cada grupo de 100 mil, sendo que o seu caso, bilateral, é ainda menos comum.
Carolina é surpreendida por crises de dor que a paralisam a ponto de fazê-la gritar, vomitar e contorcer repetidas vezes todos os dias. As internações, recorrentes, não pedem licença para interromper seus planos. Ela desmaiou de dor no dia do casamento e é frequentemente afastada das aulas da faculdade de medicina veterinária, que cita ser o seu maior sonho. A estudante é mãe, mas a menina Isabela, de 11 anos, cresce com a bisavó para conseguir ter uma rotina. Em uma das publicações na web, a mulher disse que a filha sabe sobre a sua escolha de preferir morrer. “Ela não aceita, mas compreende. Tem momentos que fala que ‘eu não posso fazer isso com ela´, ‘que eu não posso deixar ela’”, contou.
A mineira conversou com a reportagem de O TEMPO do leito de internação da Santa Casa de Alfenas, no Sul de Minas Gerais. A entrevista precisou ser adiada duas vezes e aconteceu de forma reduzida, já que a dor não tem horário marcado. “O que sinto é comparado com choques elétricos equivalentes ao triplo da carga de 220 volts. Isso não sou eu falando, é o neurologista”, continua ela, em mais uma tentativa de se provar honesta sobre o sofrimento.
A estudante relata que a dificuldade de se fazer entender é, por si só, um martírio. Ela diz ter conseguido o diagnóstico de neuralgia do trigêmeo cerca de três anos após o primeiro choque no rosto. Antes da sua primeira cirurgia, nem mesmo os seus pais acreditavam no tamanho daquilo que sentia. “Aos 27 anos, eu não imaginava que ia viver assim. São muitas terapias, remédios, anticonvulsivos, opioides fortes, todo tipo de analgésico. Quando eu era criança, tinha outra ideia sobre mim. Eu imaginava uma vida diferente”, conta.
Ao longo dos últimos anos, a estudante passou por quatro cirurgias, se consultou com cerca de 70 médicos e testou mais de 50 medicamentos. Ela faz uso de tratamento com canabidiol, além de tomar ao menos dez remédios ao dia, incluindo morfina. A dor, no entanto, ainda pulsa “como uma facada” no seu rosto. “Além da saúde física, isso afeta a minha saúde mental, afeta bastante”, acrescenta, sem se prolongar. A mineira faz uso de antidepressivos e contou nas redes sociais já ter tentado tirar a própria vida por causa da doença.
Em um dos vídeos de maior alcance do seu perfil, Carolina se contorce em uma maca de hospital, em uma crise de neuralgia do trigêmeo. Mais de 6 milhões de pessoas assistiram a 1 minuto e 30 segundos de gritos e gemidos de dor. Os seguidores, sem saber, ajudam a custear a vida da estudante. “Eu acredito que já devo ter gastado quase R$ 1 milhão desde o início dos sintomas. Por mês, eu gasto uma média de R$ 3 mil com medicamento, convênio médico, terapias que não são incluídas no plano, exames, etc. É uma quantidade absurda de dinheiro para a saúde. Hoje, a monetização do TikTok é suficiente para conseguir arcar, isso está sendo bom”, relata.
Carolina existe além da dor. “Meu maior sonho é me formar na faculdade”, desabafa. Seu corpo, marcado por 22 tatuagens, mostram uma personalidade criativa. Com relação ao suicídio assistido, ela não se deixa influenciar pelas opiniões. “Não gosto de julgamento, eu evito, saio de perto. Só eu sei o que eu vivo. Mais ninguém”, afirma. Nas redes sociais, ela compartilhou o que seria seu último pedido: “Se for para me despedir, vou fazer um velório em vida. Quero que as pessoas se lembrem de mim me divertindo”.
Na Santa Casa, Carolina está sendo examinadapor um dos especialistas em dor de destaque no país, o médico Carlos Marcelo de Barros. Conforme a estudante relatou aos seguidores em sua rede social, o novo tratamento será feito “do zero”, isto é, ela vai refazer todos os exames e ressonâncias. Não há expectativa de alta no momento. “Esse tratamento vai durar meses, ele é longo, e não vai provar resultado agora. Tenho mais de 50 ressonâncias, mas o médico quer que seja tudo do zero. Estou aqui, tomando meus medicamentos e morfina”, relatou ela.
O procedimento na Clínica de Dor é 100% do Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é amenizar o sofrimento da estudante e torná-lo, pelo menos, suportável. “A expectativa com o tratamento é que a dor dê uma amenizada. É como se o meu cérebro fosse ‘reiniciar’. Eu vou ficar em um estado de sedação, sem dor, para o cérebro descansar, e partirmos para os próximos passos. Vai demorar. Nem eu, nem as pessoas devem ficar ansiosas”, continuou.
Carolina está, no momento, sem acompanhantes no hospital. Ela explicou que o marido teve que retornar às aulas na faculdade e a mãe vai seguir a rotina de trabalhadora autônoma. Já a filha fica sob os cuidados da avó. “Isso não é um problema para mim. Eu fico sozinha tranquilamente”, disse. Já que não tem data para ter alta, ela entrou com pedido de atividades online para não precisar interromper a faculdade de veterinária.
Apesar do novo tratamento, a mineira afirmou que não desistiu da eutanásia. Ela explicou que o processo de suicídio assistido é burocrático e, enquanto isso, irá sim tentar reduzir a sensação de “pior dor do mundo”. “Eu tenho que fazer todos os trâmites de documentação e tradução para alemão ou inglês, juntar diversos laudos e relatórios de todos esses anos com a dor e ainda passar por médicos psiquiatras que confirmem que estou consciente da decisão. Só de trâmites, são mais ou menos dois anos. Nesse período, quero ficar com o mínimo de dor possível. Por isso o tratamento”, disse.
Conforme informações compartilhadas pelo Hospital Albert Einstein, a neuralgia do trigêmeo provoca uma dor forte na região do rosto, por onde passa o nervo trigêmeo, responsável pela sensibilidade tátil, térmica e dolorosa da face. A dor pode ocorrer várias vezes ao dia, com intervalos variados. No caso da Carolina, a dor crônica atinge o rosto, nos dois lados da face, na forma de pontadas ou choques.
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